terça-feira, 3 de julho de 2018

Três anúncios para um crime



Demorei para assistir o super comentado Três anúncios para um crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri; Martin McDonagh, 2017), mas valeu a pena. A atriz, Frances McDormand, que levou o Oscar pela atuação, fez efetivamente um belíssimo trabalho de interpretação. Na pequena cidade de Ebbing, o que não faltam são episódios, muitas vezes violentos, de racismo, homofobia, machismo... Mas sempre fica difícil trabalhar na chave do maniqueísmo, pois o conceito de moralidade ali é bem tênue e plástico. As fronteiras entre bem, mal, moral, imoral são realmente borradas e essa, talvez, seja sua melhor qualidade.

domingo, 10 de junho de 2018

Palavras, coisas e imaginação: Esplendor (2017)

Esplendor (Hikari, 2017, direção de Naomi Kawase) é um filme sobre audiodescrição. A maneira como ele coloca a questão faz pensar sobre os limites entre as linguagens, sobre a irredutibilidade entre elas. Como já nos alertava Foucault, na introdução de As palavras e as coisas, na instigante análise que faz do quadro Las meninas, de Velázquez: "(...) por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz (...)".* E o filme é brilhante na busca dessa (im)possibilidade comunicativa. A personagem responsável pela audiodescrição percebe, logo no começo, que suas palavras, na intenção de um descrição detalhada, acabam sendo excessivas ou invasivas, e não permitem que seu público alvo imaginem. Vale lembrar que a memória e a imaginação, como nos lembra Francastel, são fundamentais para tornarem vivos um quadro ou um filme**. A história é a apresentação da aprendizagem da personagem sobre os limites e possibilidades da audiodescrição. E nessa aprendizagem, ela aprende, também, muito sobre si mesma.



Notas:
* M. Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 25.
** P. Francastel. Imagem, visão, imaginação. Lisboa: Edições 70, 1983, p.167.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Coco

Ontem assisti ao filme Coco, ou Viva - A vida é uma festa. Gostei e, sim, é de chorar no final. O filme é visualmente bonito e tem o mérito de falar da cultura mexicana, o que não é pouco se pensarmos onde foi feito. Mas ele é repleto de clichês: um menino que quer ser músico, mas a família quer que ele seja sapateiro, como manda a tradição. Os conflitos são previsíveis e tudo vai meio assim até os primeiros 70 minutos de filme. Mas a última meia hora faz tudo valer a pena, tem várias reviravoltas (também previsíveis) que prendem a atenção e emociona. Viva é um filme educativo, que valoriza a família etc. Por isso, é um tanto conservador. E é possível não ser, mesmo em filmes para crianças. Pensemos, por exemplo, em Procurando NemoWall-E ou Divertida Mente, que trataram de questões igualmente relacionadas à família, às relações humanas, à alteridade etc., mas de um jeito menos óbvio. Fora tudo isso, não entendo até agora porque mudaram tanto o nome do filme em português. 
No mais, o personagem mais legal do filme é o cachorrinho estabanado (Dante), mas mesmo ele é subaproveitado na trama. 
Para mim, Coco é um filme bom, até mesmo melhor que Com amor, Van Gogh, em alguns sentidos (ainda não terminei de ver Van Gogh, quando  o fizer, quero escrever algo aqui). Vale a pena ver, diverte, faz chorar, todas essas coisas. É um filme que tenta re-encantar o mundo. Talvez de vez em quando isso seja preciso, afinal.

terça-feira, 22 de maio de 2018

Corra (Get out)

Corra (Get out, 2017) é um filme que cumpre o que promete: uma discussão sobre o racismo no terceiro milênio, através de um thiller bem elaborado com toques de humor. Embora indicado, não recebeu o Oscar de melhor filme de 2018, mas ganhou o prêmio de melhor roteiro original - muito merecido. Prende a atenção do começo ao fim, sem carregar demais nas tintas do manifesto. É um filme original, criativo, falando de coisas sérias e produzindo entretenimento ao mesmo tempo. Cinco estrelas.

Daniel Kaluuya in Get Out (2017)

Fonte: https://www.imdb.com/title/tt5052448/mediaviewer/rm1537293568 


A forma da água ou ainda somos o exótico

Pode conter spoilers...


A forma da água (2017) (The shape of water), ganhador do Oscar de melhor filme esse ano, foi um dos que deixei de lado por um tempo, até encontrar a ocasião oportuna de assistir. Se for para deixar uma avaliação, digo que é um filme poético, que vale a pena ver. Não sei se merecia o Oscar, até porque ainda não assisti, por exemplo, Três Anúncios Para um Crime (2017) (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) ou Dunkirk (2017) - embora tenha assistido Corra! (2017) (Get out), sobre o qual escreverei no próximo post.
Antes de ver o filme em questão, li coisas como a do diretor brasileiro Fernando Meirelles, de que era uma versão atualizada de Splash (1984). Bem, se isso se configurou como um spoiler para mim (que adorava Splash), por outro lado me instigou a ver algo de diferente dessa avaliação rasteira. E eu vi. A forma da água trabalha de um modo muito delicado a alteridade, sobretudo em relação à persistente visada "do norte" sobre o mundo "do sul".  Nesse aspecto, o cientista social grita dentro de mim e me faz pensar sobre como ainda, sob certos aspectos, somos o mesmo exemplo ambíguo de paraíso edênico exótico e barbárie primitiva que fomos desde o mercantilismo. Ainda somos o monstro atraente para o pessoal do hemisfério norte. Fora isso, é uma delicada história de amor, que vale a pena assistir. Atuações impecáveis e um elogio ao cinema, de todo modo. Assista sem medo.

Reprodução
Acima, cena de A forma da água. Abaixo, cena de Splash.
Fonte:  https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/05/a-forma-da-agua-e-mais-parecido-com-splash-1984-do-que-voce-pensa.htm

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Submersão

O novo filme de Win Wenders é daquele tipo que a gente não vê a hora de acabar para ver como tudo vai terminar. Falo isso porque não adianta esperar um filme leve, pois de leve ele não tem nada. Gostei da maneira como ele associa uma história de amor entre duas pessoas como a história de amor dessas pessoas com seus ideais mais "nobres", "coletivos". Um belíssimo modo de se pensar a relação indivíduo-sociedade. E ficamos frustrados no fim, precisamente, como indivíduos que somos. Mas é uma boa frustração, daquelas que faz a gente ficar refletindo um bom tempo. O que nos move? O amor? Uma causa? A necessidade de deixar algo para a posteridade? Questões como essas movem o filme, mas nem por isso a gente deixa de torcer por um final feliz para o par romântico. Como disse a personagem de Roissy de Campos, no filme Madame, no fundo, todos queremos um filme daqueles estrelados por Hugh Grant, em que o mocinho corre atrás da mocinha na chuva, e eles vivem felizes para sempre.



segunda-feira, 30 de abril de 2018

O amor

O que é o amor - perguntava Haddaway nos anos 90.
Camões dizia que é um fogo que arde sem se ver, e Renato Russo iria bater na mesma tecla.
Haneke iria sugerir que até um homicídio pode ser prova de amor. 
Bem, hoje para mim o amor foi um gatinho que conheci ontem. Escutamos chorar na rua em frente de casa - eu ia ignorar e tocar a vida, mas o Alê insistiu em procurar. Achou, sujo, sob os carros da rua, bravo, negro, corajoso, mas miudinho de tudo. Levamos leite, mas ele não deu as caras. No dia seguinte, um porteiro da rua nos chamou, ele tinha voltado. Alê foi lá e o trouxe para casa. Fiquei bravo, pois a gente não poder ter mais gatos, a nossa gatinha é ciumenta e hipertensa, não gosta de concorrência. E agora? Acionei minha rede mas parecia que nada iria acontecer. Esse gato miou a noite toda, pois o deixamos preso no banheiro, por causa da Capitu, nossa rainha felina. De manhã marcamos uma veterinária, que o examinou, vacinou, vermifugou. E depois disso, ele se aninhou no meu colo como se fosse meu. Me abraçou, me lambeu. Parecia que queria ficar. Mas alguém o quis, a melhor notícia! Eu fiquei aliviado, ele teria um lar, a Capitu ficaria bem, e a gente também. Mas era tarde. Agora ele já havia me conquistado. Quase voltei atrás na decisão de dá-lo para adoção. Mas não voltei, essa era a decisão acertada. Ele teria um lar carinhoso e com proteção. A Mega Sena dos gatinhos. E eu fiquei feliz, mas também triste. Agora meu coração estava marcado por ele, para sempre. Já sinto saudades de Otello (nome que o Alê tinha dado para ele, para o cadastro na clínica veterinária). Ele faz parte da minha história. Ou seja, em menos de 24 horas juntos, já nasceu o amor. Não precisa uma vida, basta um olhar. O amor não tem nada a ver com tempo, mas com encontros.
Para sempre Otello!

domingo, 15 de abril de 2018

Mulheres e cinema (Deixe a Luz do Sol Entrar & Madame)

Coincidência ou não (provavelmente, não) nas vezes que vou ao cinema (que poderiam ser mais frequentes, infelizmente) assisto filmes que tratam de relações de gênero (ver últimos posts). Na semana retrasada, fui ver Deixe a luz do sol entrar (Un beau soleil intérieur, Claire Denis, 2017) e ontem assisti Madame (Amanda Sthers, 2017). Em ambos, as diretoras e as protagonistas são mulheres. Pensei em assistir Com amor, Simon (Love, Simon), que é de 2018, que também trata de gênero, no caso, sobre um rapaz homossexual lidando com essa questão, mas vai ficar para a próxima vez.
No caso de Deixe a luz do sol entrar, fui ver simplesmente porque amo Juliette Binoche, que talvez seja minha atriz favorita. São duas horas de overdose de Binoche na telona, puro deleite! O filme fala de relações amorosas, sobretudo do ponto de vista de uma mulher na faixa do 50 anos que, ainda que bem sucedida, realizada profissionalmente e financeiramente, é frustrada pelo punhado de homens medíocres que aceita com pares românticos. Penso que o filme seja mais bem compreendido por mulheres que por homens, embora haja ali elementos relacionados à condição humana que valem para todo mundo. A questão de classe não é muito colocada, pois se trata de uma grupo social específico (artistas, banqueiros etc.), embora um dos amores da personagem de Binoche seja de um status considerado inferior por ela, motivo pelo qual eles não duram enquanto par. Vale muito a pena, sobretudo pela forma dos diálogos: monótonos, repetitivos, por vezes semelhantes a uma sessão de análise. Aliás, quase no final do filme, Gérard Depardieu surge como um guru de Juliette (no caso, da personagem Isabelle) que tem ares de terapeuta. As  cenas arrastadas e monótonas levam o público do cinema ao desespero: pessoas falando no meio do filme ou indo embora ("Também, porque ver um filme francês, dá nisso", foi o tipo de coisa que escutei na sessão). Penso que vale muito a pena.

Cartaz do filme, com Juliette Binoche

Madame, embora traga a questão de gênero como pano de fundo, tem muito mais um recorte de classe.  No filme, a socialite Anne, interpretada por Toni Colette, obriga sua governanta, a dedicada Maria, imigrante espanhola vivida por Rossy de Palma, a participar de um jantar com pessoas muito importantes da sociedade, para completar 14 pessoas na mesa (13 seria um número de azar, no caso, e isso não poderia acontecer, segundo a anfitriã). Mas o tiro sai pela culatra e Maria rouba a cena, sendo confundida com uma condessa espanhola. O filme vai lidar com a questão de classe de forma muito direta, quando Maria começa a se pensar como um indivíduo e sua patroa lhe diz que aquele não era seu mundo. Não vou dar spoilers, mas o filme vale muito a pena, por ser uma crítica à hipocrisia da sociedade, seja em termos de relações amorosas, seja em termos de lutas de classe. É um filme em que rimos muito, mas do qual não saímos ilesos. Embora não seja lá muito original, é divertido e reflexivo. E não dá pra perder mais essa bela interpretação de Rossy de Palma, uma das pérolas que Almodóvar fez o mundo conhecer.

Roissy de Palma, na pela da governanta Maria, na cena em que realiza sua performance no jantar.